A esquerda paga pelo desgaste do PT

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Um típico ciclista de classe média pedala por uma rua movimentada de São Paulo. Branco, olhos claros, eleitor de Marina Silva no primeiro turno de 2014 e de Aécio Neves no segundo, a bicicleta comprada na Europa, o capacete lustrado, o uniforme de neoprene mal saído da embalagem, nada o constrange, ou deveria constranger. Até um senhor de, aproximadamente, 50 anos abrir a janela de sua SUV e gritar: “Seu petralha safado, vai pedalar em Cuba”.
Embora alguém possa suspeitar da sanidade mental do motorista, não há nenhum indício de disfuncionalidade, o que permite uma interessante digressão sobre as sinapses em sua massa encefálica que o levaram a agredir gratuitamente o ciclista. Em milésimos de segundo, as descargas elétricas entre os neurônios produziram a seguinte conexão: “Se é ciclista, apoia as ciclovias do prefeito Fernando Haddad, portanto, só pode ser petista e se é petista é a favor do mensalão e do petrolão e defende a destruição do Brasil”. Ou, em uma equação simples: “ciclista = corrupto”.
Aplica-se a mesma fórmula para: negros, homossexuais, feministas, defensores dos direitos humanos em geral, alguém de camisa vermelha ou que simplesmente ouse lembrar que a corrupção não começou ontem. Corrupto, petralha, conivente, passaram a rotular quem pensa diferente. Culpa do clima de acirramento político e ideológico no Brasil. E culpa do PT, o partido que encarnou não faz muito tempo os ideais de inclusão e emancipação da maioria dos brasileiros, mas que miseravelmente sucumbiu às falcatruas e aos desmandos típicos do sistema de poder no País.
Alvo constante de ameaças, o jornalista e sociólogo Leonardo Sakamoto, diretor da ONG Repórter Brasil, dedicada a combater o trabalho infantil e as formas contemporâneas de escravidão, decidiu bloquear os comentários de leitores em seu blog hospedado no portal UOL. Cansou das mensagens de ódio frequentes. Há tempos, a agressividade no ambiente virtual começou a migrar para a vida real. Hostilizado, teve de fugir de manifestações recentes para escapar de agressões. Na cobertura das eleições de 2014, foi surpreendido com a atitude de uma motorista, que baixou o vidro do carro para cuspir em sua direção. “Não há dúvidas, a extrema-direita saiu do armário”, diz. “Mas, mesmo com danos colaterais, é preferível que essas posições apareçam, pois sempre existiram, ainda que de forma dissimulada.”

Manifestação 01

Quem acompanha o trabalho de Sakamoto sabe que ele jamais deixou de criticar o governo e os desmandos do PT no poder. Mais recentemente, engrossou o coro dos descontentes com o pacote de ajuste fiscal do ministro da Fazenda, Joaquim Levy. Para ele, é inconcebível a supressão de direitos trabalhistas para pagar a conta pela inabilidade da equipe econômica de Dilma Rousseff. Da mesma forma, posiciona-se firmemente pela punição dos responsáveis pela corrupção na Petrobras. Mesmo assim, é frequentemente acusado de ser “mais um petralha”. Os ultradireitistas não enxergam muita diferenciação no restante do campo político, diz. “Tudo o que está à esquerda deles é lixo. Sou obrigado a ouvir diariamente que defender direitos humanos, de negros, das mulheres, é coisa de petista e corrupto”, lamenta. “É um problema educacional. Falta formação política, espírito crítico e respeito às opiniões divergentes. Muita gente não sabe interpretar texto, tira conclusões estapafúrdias daquilo que escrevi. Garotos fazem apologia da ditadura por absoluto desconhecimento de nossa história.”
Não só a esquerda sofre com esse discurso raivoso e carente de lógica. Recentemente, o governador de Goiás, Marconi Perillo, de inegável DNA tucano, foi chamado de “petralha” por dar uma pausa à velha rixa política e elogiar Dilma durante a inauguração de uma ferrovia. Os editores do jornal Folha de S.Paulo, insuspeitos de petismo, tornaram-se alvo de acusações semelhantes após o instituto Datafolha divulgar a sua estimativa do número de manifestantes em 15 de março na Avenida Paulista: 210 mil, e não o 1 milhão computado pela Polícia Militar do estado (sob o comando do PSDB, diga-se).
A fragilização do PT, primeira agremiação de esquerda a alcançar o poder federal após a ditadura, causa um dano muito maior para os demais partidos deste campo e mesmo para quem defende ideias progressistas, avalia o historiador Douglas Belchior, militante do Movimento Negro e engajado em projetos de educação popular na periferia de São Paulo. “Ao sucumbir a práticas políticas nefastas, o PT se desmoraliza e arrasta todo mundo que, no imaginário popular, tem a mesma ideologia”, diz o ex-petista, que migrou para o PSOL há dez anos. “O problema foi o PT se afastar da sua base e abrir mão da disputa ideológica. A mobilização ocorre apenas às vésperas das eleições. Resultado: a juventude está perdida, sem referência, e nem sequer nota a diferença entre esquerda e direita. Não me surpreende ver manos da periferia ao lado de quem defende a volta dos militares.”
Durante a celebração dos 35 anos do PT, em fevereiro, o próprio ex-presidente Lula reconheceu que a sigla se burocratizou demais. “Deixou de ser um partido das bases para se tornar um partido de gabinetes”, observou. Agora, uma das principais preocupações é a adesão às manifestações contra o governo da classe C, maior beneficiária dos avanços sociais da última década.
“O antipetismo nasce das classes médias estabelecidas, até por um ressentimento decorrente da perda de distinção social em relação às camadas populares, que passaram a ter acesso aos mesmos bens de consumo e a frequentar os mesmos ambientes, como os aeroportos”, afirma o cientista político Claudio Couto, da Fundação Getulio Vargas. “Mas a classe C incorporou o discurso de que todos os males do Brasil derivam do PT. Isso não ocorre apenas porque essa tese tem sido repetida à exaustão por certos publicistas, mas pelo fato de a inclusão desse grupo ter ocorrido pela via do consumo. Hoje, eles têm eletrodomésticos de última geração e automóvel particular, mas dependem de serviços públicos precários, sobretudo saúde e educação. Querem mais e temem perder o poder de compra com o agravamento da crise.”
Além disso, os recorrentes escândalos de corrupção a envolver o partido ajudaram a catalisar a insatisfação popular. “Se não conseguir recuperar sua imagem até o fim do mandato, o PT corre o sério risco de se converter numa espécie de PMDB pós-Sarney, incapaz de se viabilizar como alternativa de poder”, emenda Couto. Na avaliação do filósofo Renato Janine Ribeiro, professor da Universidade de São Paulo, os petistas estão acuados por terem deixado de lado o debate ético. “O PT não apenas foge de qualquer discussão sobre o ‘mensalão’ e a corrupção na Petrobras, como desistiu de apresentar seu currículo ético. A fome e a miséria também são chagas éticas em nosso País, e a oposição costuma ser muito insensível a elas. Mas como o PT pode apontar os erros dos adversários sem reconhecer os seus próprios?”
Com a esquerda acuada, os conservadores fazem a festa. Evangélico, o peemedebista Eduardo Cunha, presidente da Câmara, desarquivou propostas para impedir o aborto até nos casos previstos em lei, incluídos o estupro e a gravidez de risco. Os direitos da comunidade LGBT seguem ameaçados por projetos destinados a restringir a concepção de núcleo familiar à união entre um homem e uma mulher, o que pode impedir a adoção de crianças por casais gays. Propostas de redução da maioridade penal tramitam no Congresso a pleno vapor, a despeito dos alertas de especialistas sobre sua ineficiência.
Na bancada governista, a deputada Jandira Feghali, líder do PCdoB na Câmara, acusa a oposição de forçar um terceiro turno das eleições presidenciais. “Não atacam o PT porque o partido tem algumas figuras denunciadas, atacam porque querem derrotar o projeto da esquerda.” A parlamentar reconhece, porém, que Dilma errou ao suprimir direitos dos trabalhadores no ajuste fiscal. “Não são eles que devem pagar a conta. Por isso, defendo a taxação de grandes fortunas.”
Originado de uma dissidência petista, o PSOL sempre fez oposição às gestões de Lula e Dilma, mas sofre com a contaminação do debate. “Há uma tentativa de criminalizar toda a esquerda a partir da experiência do PT no poder, cuja atuação está longe de ser identificada como de esquerda”, afirma Luciana Genro, candidata à Presidência da República pelo PSOL em 2014. Segundo ela, a “esquerda independente”, inserida nos movimentos sociais, ainda consegue dialogar com a juventude e pode inverter o jogo. “Basta apresentar uma alternativa de fato, que não significa retroceder ao projeto neoliberal dos governos tucanos.”
Na avaliação da deputada Luiza Erundina, do PSB, a crise não é só do PT, mas do modelo de representação política. “Participei de todas as comissões especiais dedicadas à reforma política desde o meu primeiro mandato, iniciado em 1999. Estou convencida de que qualquer reforma traria remendos num tecido esgarçado”, diz a parlamentar, ora dedicada à articulação de um novo partido. O Raiz Movimento Cidadanista inspira-se no Podemos, da Espanha, e no grego Syriza. “Há um esgotamento dos modelos de Estado, democracia e representação política. Por isso vemos essa rebelião na Espanha, na Grécia, em Portugal, na Itália, na Tailândia.”
Os conservadores, evidentemente, movem-se para ocupar o vácuo. “Por causa dos equívocos do PT, o discurso de esquerda foi silenciado”, lamenta Janine Ribeiro. “A radicalização inviabiliza qualquer debate sério. De forma pueril, tudo se converteu numa luta do bem contra o mal. E contra o mal, não há diálogo possível. É preciso erradicá-lo.”

*Reportagem publicada originalmente na edição 843 de CartaCapital, com o título “O ônus coletivo”
Fotos: Instituto Lula, Reprodução.

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