Cantinho literário

 

 

Sob a sombra dos sobrados

Paulo Machado é escritor

Repousa o meu olhar no ontem.
Na porta secular varrendo as ruas,
Descubro o que não fui, e o que sou,
E o vento diurno e morno
Leva-me as margens doce do meu rio,
Onde mergulho nu e livre.
Sob a sombra dos sobrados
A letargia toma conta de mim,
E um descansar contínuo invade-me o corpo.
Sobre as sombras dos sobrados
Miro o céu e alço voo infinito
Na cidade secular que ainda dorme dentro de mim.
Sob a sombra dos sobrados
Portas antigas escondem segredos só meus.
Fecho janelas, guardo chaves, tranco-me!
Vendo no velho um olhar presente,
Ante um futuro que teima volver-se para o ontem.
Sob a sombra dos sobrados,
Dito regras, crio códigos,
E as leis que promulgo, cumpro-as!
Sob as sombras dos sobrados
Os juízos são refeitos pelos sonhos da comuna alheia,
Perdidos num tempo longíncuo.
Deito-me sobre as sombras dos sobrados
Mirando o mesmo céu azul,
E a brisa da tarde me traz o vento
Que baila nas ruelas e becos,
Levantando nas pedras nuas
A podridão dos senhores,
O descrédito do povo negro,
Mergulhado num rio sem esperanças.
Sob a sombra dos sobrados
Me vejo sem espelho, sem cortes e neuras.
Sob a sombra dos sobrados,
Sonhos, viagens, meios…
Sob a sombra dos sobrados, pergunto:
Quem criará novas sombras?
Em que data?
Em que tempo?
E quando?

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